Como estamos na Semana do Livro e também sou amigo (apenas no Facebook) do autor, quero comentar seu livro. Temos aqui uma obra de fôlego (mais de 500 páginas), mas a leitura é fácil, embora não simples. O livro me interessa de forma particular porque trata de uma família de imigrantes que chega ao Brasil da Europa depois da Segunda Guerra. No meu caso, minha família iniciou sua peregrinação ao Brasil na década de 50, logo após as personagens de Halo Ambar. De forma distinta, o romance de Fernando trata de uma família judia proveniente da Hungria, enquanto no meu caso, uma família norte-americana-alemã e cristã.
De particular interesse, então, temos justamente a interação das personagens com a história e um retrato bastante fiel dos acontecimentos políticos e sociais entrelaçados e interpretados através do olhar de um estrangeiro chegando para viver e estabelecer-se em uma nova pátria. No caso dos judeus, temos a experiência ímpar do Holocausto, das separações, perseguições e morte. Aqui, o Brasil representa uma esperança e um acolhimento, não necessariamente com carinho, mas ao menos com abertura e um princípio de igualdade de oportunidades. Os judeus do pós-guerra imediato ainda não tinham um país, mas formavam uma tribo com uma cultura enraizada em língua (iídiche e hebraico), religião e tradições milenares. Na minha família, principalmente pós-guerra, não se falava mais alemão, e meu pai havia se tornado pastor e depois missionário de uma seita batista. Enfim, “outsiders”, cada um com uma densidade diferente de tradições, vantagens e desvantagens.
No livro de Fernando, a família Neuman se forma no Brasil em 1950 com o casamento de Szymon com Brenda, também judia, mas nascida em Recife. Szymon ainda tinha Hana, nascida na guerra e cuja mãe não escapou dos nazistas, vindo a falecer em um campo de concentração. Por sorte, Hana escapa com o pai e acaba se abrasileirando, tendo como primeira língua o português. Em seguida, nascem Boris (1954) e Anita (1959), que, juntamente com Hana, acabam se tornando os principais personagens.
Não sei até que ponto as pessoas nascidas no novo milênio ou mesmo no último quarto do século XX se interessam pela história da década de 60 em diante no Brasil. Para mim e outras pessoas da minha geração, com certeza, são memórias de uma cultura vivida. Embora eu seja um pouco mais velho do que Boris e Anita, tenho sobrinhos nascidos criados no Brasil, e são exatamente da mesma geração. Assim, a leitura se torna mais divertida quando eventos como a passeata dos 100 mil em 1968 e depois o AI-5 em dezembro do mesmo ano fazem parte do enredo.
As transformações culturais entre os anos 50 e 80 são fundamentais para entender o Brasil de hoje, e a forma como o autor desenvolve o caráter de Boris e Anita e seus cônjuges, casos e namoros retrata de forma convincente as normas e “mores” em transição, chegando até 2020, ou seja, às primeiras duas décadas do novo milênio. No livro, Anita representa a época hippie, a contestação política e sexual. Hana, por sua vez, representa a academia e a rota dos docentes dentro da ditadura e depois. Boris, por outro lado, sofre de uma louca clarividência, ora conveniente, ora socialmente inconveniente e também engraçada. Além disso, toda a família tem que lidar com sua herança do judaísmo no Brasil e suas raízes, às vezes na Europa ou em um transplante eventual para Israel. Fernando aprofunda na cultura judaica no Brasil, e alguns podem até achar exagerado. Porém, o drama e o diálogo entre ser judeu e ser brasileiro, e ser brasileiro judeu, servem para impulsionar a narrativa. Assim, vão as experiências, como o topless do verão carioca em pleno governo militar, os sonhos com as garotas e as descobertas do prazer sexual, que poderiam ser até mais gostosos pela existência e quebra de normas antigas. Hana tem namoros e amantes entre seus alunos, e Anita é rebelde principalmente no comportamento social.
Como vivi o mesmo tipo de evolução, repressão, movimento estudantil, luta contra a ditadura, o uso de maconha e uma certa pretensão intelectual de esquerda festiva, o livro me ajudou a reviver as pessoas e as memórias de um período que, se não de desenvoltura, pelo menos de boas ilusões quanto ao futuro do Brasil, democratização e liberdade.
Claro que as ilusões vão sendo testadas e muitas vezes descartadas. Assim, no livro, os casamentos desmancham-se e os filhos decepcionam. Mas a vida continua. No meu caso, a opção americana tornou-se realidade novamente. No caso do livro, o clã Neuman ora está em Recife, China, EUA ou Europa. Há prosperidade no livro, mas também vem a pandemia prevista por Boris, que enxerga longe. Vem também a desilusão com a democracia e com o próprio Brasil, e Fernando Dourado retrata de forma direta a corrupção e a necessidade de usar influência para sobreviver na política e no mundo dos negócios. Enfim uma historia bem contada, um pouco convoluta e que ilustra bem o velho ditado que o Brasil não é para principiantes.
Fernando Dourado nasceu em Garanhuns, e sua mãe ainda vive em Recife até hoje. Ele apresenta a cidade e o estado com carinho, apesar de estar morando e escrevendo em São Paulo. Acabo de chegar do Brasil aonde comprei o livro e foi uma otima leitura, com altivez e tiradas de humor e sabedoria. Meus parabéns!
Uma coincidência. No Estadão de hoje (24/04/2024), um artigo de outro sobrevivente e seu caso de amor com o Brasil e também com a filha do comandante de Treblinka.